quarta-feira, 7 de abril de 2010

Degustação

Logo que cheguei à mesa, em um aconchegante prato, me surpreendi que os clientes eram dois cachorros. Ambos tinham expressões faciais serenas com as quais simpatizei. Sentia o calor do molho em minhas costas. Mas outra energia ainda mais intensa irradiava no olhar do casal.
Ele era bem mais descolado. Percebi sua intimidade com as ruas, que se sentia à vontade naquele restaurante escuro, incrustrado em uma viela londrina. Eu sabia que estava em Londres porque, nos tempos em que era apenas trigo, nascido nos aveludados campos de Dover, fui transportado até aqui e nunca mais viajei. Cheguei, acredito ao meu destino. Mas não temo por isso. Esta é a minha função, como a de outros tantos pelo mundo. Servir, dar prazer, alimentar. Ser esquecido, fio anônimo.
Bem, voltemos ao casal. Ela tinha um olhar brando, vinha de uma classe social alta. Pouco conhecia da vida. Nem sabia o que era uma carrocinha, quando ele contou que foi preso em uma, ela não entendeu. Tão linda aquela cocker... Sorria, com timidez, das falas ousadas do companheiro, admirada pela falta de apego a convenções sociais. Mesmo assim via nele uma generosidade que jamais encontrara.
Meu colega Fio Gordo partiu antes de mim. Ele o abocanhou com o focinho aberto e o engoliu rapidamente. Então eles conversaram sobre a noite, sobre o que ela estava achando da aventura, sobre a visão de mundo dele. Falaram de liberdade. Ela nunca teve. Ele, por outro lado, teve demais, a ponto de transbordar para o lado da solidão. Sentia falta de carinho. Mas não dependia de dinheiro para se satisfazer pelo concreto das sarjetas. Sempre soube se virar. Afinal, era um vira-lata.
Depois de um silêncio profundo, ela deu um suspiro. Como se estivesse baixando sua resistência, aderindo ao desafio de se render ao desconhecido. E riu, novamente, antes de baixar a cabeça e se dirigir a mim. Vivi escravo de minhas características, com uma trajetória traçada, para muitos sem graça. Fui manipulado, moldado, às vezes maltratado. Nunca me consideraram como um ser individual. No entanto, eu sei que tive muita importância. Ele, sem perceber, me abocanhou pela outra extremidade. Fiquei esticado, entre duas bocas, tão cheio de orgulho do meu papel. Veio um certo constrangimento, então os dois sorriram. E começaram a me degustar, um de cada lado, até irem se aproximando rumo ao beijo. Enquanto unia dois mundos, enquanto efetivava um vínculo, eu ia desvanecendo, dando tudo de mim por uma causa nobre, empenhando minha existência pela felicidade alheia, mas na roupagem de ser secundário. E então sumi, sem que percebessem meu ato heróico, como fazem com a maioria dos obscuros que cumprem um papel precioso. É, os cachorros quando amam são mesmo cegos.

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