segunda-feira, 5 de abril de 2010

A estrada

Guardava em si rastros de suas viagens a Santo André, para visitar seus tios e primos que lá moravam. Era uma longa travessia que ele fazia, levado por seu pai. Sua mãe viajava ao lado do motorista, ajudando-o a “pilotar” o carro. E com sua irmã, também no banco de trás, dividiam sonhos e divagações que emanavam enquanto olhavam a paisagem pela janela. Às vezes, cantavam, outras conversavam. Algumas dormiam no ritmo de solavancos protetores. Não era raro ouvir comentários do pai com a mãe, a destrinchar os indecifráveis caminhos da capital ao ABC.
Já na casa dos tios, apreciava, mesmo se intimidando com a presença de adultos e crianças mais velhas, um pouco de seu mundo isolado. No quintal, olhava o céu inebriado com as variações de cores, sob os murmúrios de um terreno baldio atrás do muro. Na pequena sala da entrada, assistia a jogos inesquecíveis, como a final do Brasileiro de 1976, entre Corinthians e Inter, e a derrota do Cruzeiro para o Bayern, no Mundial, diante de uma TV preto e branco. Lembrava-se também de um jogo entre Brasil e Colômbia em que seu pai, na honestidade sem barganhas que o marcava, comentou que o gol do Brasil veio através de uma jogada irregular, após o Valdomiro cobrar a falta com a bola em movimento.
As conversas com seu primo mais velho também não se apagaram. Recebeu bem intencionadas lições de educação sexual, com o rapaz lhe explicando algumas regras básicas do relacionamento entre homem e mulher. Recordava-se que o tio e a tia tinham um bem cuidado Fusca vermelho, sempre estacionado na garagem da entrada, feita para um carro. E que, apesar da presença semanal, nunca conseguiu se abrir diretamente com eles, nem com seus primos, sufocado por seus temores e colocando-os em um patamar muito distante do dele.
Os tios tinham uma cachorrinha, pequinês, chamada Xereta. O fato de a Xereta ser cega de um olho o afastava dela. Assustado, não conseguia ver que o animalzinho também precisava de carinho e atenção.
Até que, de repente, novos caminhos não mais o levaram para lá. Aquilo tudo ficou muito longe. Nem se lembra de qual foi a última visita que fez àquela casa. Nem de quando viu a Xereta pela última vez. Como que mergulhando em um longo sonho, foi acomodando aquelas cenas em algum lugar, sem encaixar respostas, nem encontrar explicações. Gostava ou não daquela torrente de emoções que o impediam de pensar?
Algo começou a se esclarecer quando retornou a Santo André, mais de 30 anos depois, contratado para trabalhar no município. As recordações passaram a emergir com mais frequência em flashes em sua memória de adulto. Ele, intrigado, não conseguia se lembrar com precisão do caminho que percorria nem o local em que a casa ficava. Tudo permanecia apenas uma sequência de sensações. Tentava em vão refazer o trajeto, agora conhecendo, com olhos de adulto, as ruas da cidade. Como será que meu pai chegava até lá? Lembrava-se que a casa ficava em uma rua longa, uma espécie de estrada margeada de sobrados classe média.
Casou-se, tornou-se pai. E o orgulho de mostrar suas conquistas o levou a convidar todos os tios para sua casa. Desta vez era ele quem tomava a iniciativa, mudando a configuração de outrora quando, ou visitava, ou recebia visita de aniversário na residência dos seus pais.
Então irrompeu a coragem de perguntar ao seu tio e primo o nome da rua em que moravam lá em Santo André. O tio demorou para responder, falando motivado de vários lugares da cidade, querendo ele também refazer sua trajetória, agarrar o tempo como se este não escorresse como água pelas mãos. O primo, entretanto, foi preciso: estrada João Ducin. Só com essa resposta, feita com o mesmo timbre amistoso da adolescência, percebeu também no parente uma relação emocional com aquele local, aquela casa em que morou, aquele tempo que passou.
Soube então que a imagem de um prédio amplo e acinzentado, um dos pontos do trajeto, impregnada em sua cabeça como sendo o Paço Municipal de Santo André era o de São Bernardo, de construção similar. E conheceu melhor a cabeça de seu pai, entendendo que ele entrava em Santo André via São Bernardo, que servia como uma espécie de ponte para encurtar a travessia.
Ouvindo-os falar de Santo André se aproximou tanto como nunca imaginara antes. Compartilhou reminiscências, alcançando respostas por meio de uma sequência que novamente o levava a algum lugar.
Reconstruiu uma trajetória, integrando-a à sua atual condição paterna. Entendeu, com muito mais intensidade, seu papel de primo e sobrinho. Neste seu aniversário ele pôde se apropriar de muita coisa. Dos jogos na TV preto e branco, da visão da Xereta, que não devia ser tão cega assim. Do tio e da tia, sempre zelosos cuidando do Fusca, do primo em busca da afirmação, da memória de seu pai. E de si mesmo.
Nesta nova Santo André, palco de sua atual rotina, pôde entender que a vida é feita de pontes, entre histórias pessoais, na costura entre cidades. E que aniversários são feitos de presentes. De novos, que, nos tempos de menino, pareciam inatingíveis, como filhos. E de antigos que nunca foram abertos, como um baú precioso, como uma velha família.

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