quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Afetuoso

Desde criança eu achava aquele tio misterioso. Era baixinho, corpo atarracado, cara volumosa, olhos grandes e negros, sotaque semelhante ao árabe, falando com as vogais abertas e em tom espalhafatoso. Andava sempre perfumado, com costeletas, camisa social aberta e sapato bico fino. O filho o idolatrava. Nem ligava para sua fama de mulherengo. Eu  só ouvia os elogios que saíam seguros e firmes na voz daquele menino, meu primo. “Não sei o que meu pai faz, ele não me conta. Outro dia vi ele desembrulhando uma arma que tirou do armário, mas ele logo a escondeu quando percebeu que eu estava lá”. Só fui uma vez à sua casa, depois que se divorciou de minha tia. E não vi nada de estranho. Era um apartamento simples, com  móveis estofados marrons, pisos de cerâmicas ornados de tapetes, um corredorzinho e um quarto. Nenhum quadro revelador, nem cofre, nem mafiosos fumando pelos cantos. De nossas poucas conversas, lembro apenas dele me dizer que não gostava de futebol porque não via sentido em onze homens correrem atrás de uma bola. Parecia viver seu mundo com intensidade. Tinha certa razão, porque, enquanto os trouxas corriam, a vida rolava, desenfreada. E ele a seguia, viajando aqui e ali, saindo por uns tempos, levando na sua bagagem os seus mistérios e a imaginação do filho. “Acho que ele é traficante de armas”, me revelou um dia o menino, um tanto orgulhoso. Sempre que me via, o tio declarava que me amava, deixando-me um pouco constrangido com o calor afetuoso e molhado de seu beijo em minha buchecha. Soube outro dia que ele morreu. Estava mesmo sumido. E morreu sem querer que ninguém soubesse do fato. Nem de que ficarara acamado. Foi o filho quem cuidou dele. Senti por nunca lhe ter perguntado quem ele era, o que queria, o que sentia. Só sabemos acusar os outros de não fazerem isso com a gente. Seu beijo afetuoso parecia dizer que ele não gostava de fugir. Era uma necessidade, entre tantas pessoas passageiras. Mesmo sem conhecer as respostas, acredito que desvendei  os seus mistérios,  por pura intuição. Ele até gostaria de falar de si para quem realmente quisesse ouvi-lo. Estou convicto de que ele não era traficante. E não era mesmo. Um dia descobri que aquela arma que ele desembrulhou e escondeu de meu primo era, na verdade, uma arma de brinquedo.

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