quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Hemingway

Levanto de madrugada, sem conseguir dormir. Vou para a sala. Sento à beira da mesa de jantar, tentando conversar com a solidão da madrugada. A alguns metros, na prateleira, vejo um livro seu, sr. Hemingway. De repente me lembrei que o sr. era um estudioso da cultura espanhola, entendia meu idioma. Quem sabe entenda o que eu não entendo e consiga as explicações que não busco. Só não me conte, por favor, o que não quero saber. Apenas sopre, de suas histórias e de seu mar, um pouco de esperança para a dor que me acompanhará para sempre. Sr. Hemingway, saiba que eu não quero saber sobre a ditadura militar no Brasil, que calou milhões de vozes, oprimiu gritos a ponto de, para muita gente, o ódio ter rendido a nobreza da democracia, quando esta foi restabelecida. Não quero saber que foi por aí que se intensificou a força das torcidas organizadas, nos anos 80, com muitos dos seus membros confundindo liberdade com falta de limites para a revolta. Nem que elas passaram a refletir o espírito de organizadas que se instaurou no Brasil, alcançando não só os políticos, como as próprias pessoas que deles reclamam. Sr. Hemingway, aqui, na aragem da distante e pacata Cochabamba, sinto que nada disso me interessa. Não preciso de explicações. Nem de cronologias sociais, com a óbvia sequência de fatos que assinalavam para seguidas tragédias. Nem fiquei sabendo do sinalizador que a Rose atirou no Maracanã. Na época, nem pedi pela desclassificação do Brasil da Copa, o que já seria um primeiro passo para se corrigir rumos jamais corrigidos. E depois, mal ouvi as explicações para as mortes de torcedores nas décadas de 90 e já neste início de século XXI, como se estivéssemos ainda na Idade Média. Não entendo também como os discursos pelo fim da violência não passaram de retórica, a ponto de, hoje, no Brasil, duas torcidas praticamente não poderem mais dividir o mesmo estádio. Algo deu errado, apesar dos discursos, mas isso não me diz respeito. Muito menos me liguei na impunidade que prevalecia a cada episódio lamentável. Pelo contrário, até em um simples jogo, despretensioso, a torcida costuma gritar "o pau vai quebrar", sem que ninguém faça nada. Depois de ganhar título no Japão, jogador tripudia adversário rebaixado, sem receber advertência de dirigente. O caos, realmente, é total, mas eu o desprezo. Repudio desculpas esfarrapadas daqueles que juram obedecer o regulamento, lamentam o ocorrido, escrevem "fica em paz" em cartazes para livrar a própria cara, mas na hora da punição começam com a velha história do "veja bem". Pouco me importa se, no Brasil, aqueles que se dizem moralizadores querem apenas que a lei valha para os outros. Posso dizer até que foi de propósito que me mantive anônima neste episódio triste. Mesmo porque ninguém quis saber o que eu sinto. Achei até engraçado as discussões que nem levaram em conta a minha pessoa, justamente a mais importante neste caso. Afinal, sou mãe. Quem reclama de prejuízo financeiro nem se lembra que a insônia maior está comigo. Mas isso também não importa, sr. Hemingway. Não quero saber de baboseiras, de santos do pau oco. Nem preciso de teses sociológicas, que tentem descobrir as causas do que eu não quero saber. Posso dizer, sr. Hemingway, que, em apenas sete dias, já estou cansada desta história toda. Destes debates esdrúxulos, cínicos. Permito-me parafrasear o poeta renascentista John Donne, que o inspirou em sua obra. Não me pergunte, portanto, por quem os sinos dobram, sr. Hemingway. Sei apenas que os sinos não dobram para eles, que só vêem a ganância, os interesses mesquinhos, o egoísmo. Para aqueles que não assumem responsabilidades. Enganados, pensam que os sinos dobram apenas para as suas ilusões. Mas não. Eles não percebem que nenhum homem é uma ilha isolada. Não se dão conta de que, quando um se vai, é como se parte do outro também fosse subtraída. Preferem aparentar tristeza para desencargo de consciência. Para depois mostrarem novamente as garras. "Não aceito isso... não tenho culpa daquilo... vou seguir o regulamento mas me sinto vítima... tenho a presunção da inocência...veja bem..." Sr. Hemingway, é como se o homem só vivesse de palavras ao vento. A verdade, sr. Hemingway, é que já falei demais. Me dou até o direito de dizer: veja bem, a manhã está chegando e tudo isso não me diz respeito. Daqui a pouco soarão as badaladas da catedral de minha saudade. Veja bem, não quero saber de mais nada. Lamento que os sinos deles não dobrem para a vida humana. O que me importa, veja bem, é por quem os meus sinos dobram. E meus sinos dobram por ti, Kevin.

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