quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Benção

Antes de apagar a luz, o primo lhe contou, deitado na parte de cima da bicama. "É um presentão e tanto, uma benção do rebe". O rapaz estava ansioso. No dia seguinte, iriam à Yeshivá do Brooklin, para que somente ele recebesse a benção do rebe, figura mais eminente do judaísmo naqueles anos 90. O primo, rosto magro, nariz aquilino e olhar de malandro, já havia recebido e não poderia fazê-lo novamente em um curto período. O privilégio foi conseguido porque seu primo, então religioso, era amigo de alunos da escola rabínica. Deitado no escritório, improvisado como quarto, ele imaginava a emoção que sentiria. O primo contava as histórias que ouvira. Estava tudo escuro. A tia americana, que os recebia gentilmente em Nova York, dormia. Sussurravam, para não acordar ninguém naquela casinha apertada do bairro judaico. Tudo seria esplendoroso, não fosse o susto que ele tomou ao ouvir a última história, quase adormecendo. "E o rebe deixou de abençoar um rapaz da fila. Na noite seguinte, ele morreu em um desastre de avião", emendou o primo. "O que você está dizendo?", reagiu, sentando-se no colchão. "Isso mesmo, a benção do rebe é como um decreto". "Você me conta isso agora, depois de ter recebido sua benção e na véspera de eu receber a minha?" "E qual o problema?" "O problema é se ele passar reto por mim, como fez com o infeliz. E você bem sabe que tenho voo marcado para o dia seguinte". Na verdade, a história contada foi um pouco aumentada. O que o rebe fez, em uma única ocasião, foi, muito sutilmente, deixar de dar uma benção do Lulav, que pedia vida longa, a um senhor em uma enorme fila. O senhor morreria logo à noite. Só quem vê em câmera lenta, no videotape, consegue detectar esta cena. Acontece que, para ele, saber disso daquela maneira, horas antes de ser agraciado, foi um pesadelo. Virou-se e revirou-se na cama durante a noite. Já o primo, tranquilo, dormia o sono dos anjos. Ou melhor, dos rebes. De manhã, tomaram rapidamente o café deixado pela tia, que já saíra para as compras. Apressados para não perder o momento da ida do rebe ao saguão, saíram pelas ruas do Brooklin rumo ao local sagrado. Foram a pé. Andando por amplas avenidas, observavam casinhas geminadas, prédios baixos e avermelhados, algumas fábricas, até chegar à sinagoga. O que poderia ser um momento especial havia se transformado em uma agonia para ele. "E se o rebe passar reto por mim...e se o rebe passar reto por mim", repetia, para si. O primo, por sua vez, caminhava assobiando. "Quer tomar um café antes de entrar?" perguntou o primo, já no portão. "Que café, que nada! Quero resolver logo o meu futuro!" bradou, já irritado. Na entrada, foram recebidos por um jovem rabino, que os orientou a esperarem na lateral. Não havia fila alguma. Milagrosamente, ao contrário da maioria dos dias em que judeus visitantes se aglomeravam por um aceno, só ele iria receber as palavras santificadas do grande religioso. Isso o assustou ainda mais. E olhando para as galerias lotadas de religiosos, ouvindo o murmúrio dos que rezavam, observando outros lerem seus livros sagrados com toda a devoção, sentiu-se realmente só. Se o rebe passasse reto não haveria dúvida. Ele seria a única e incontestável vítima de seu destino exposto diante de todos. Passaram-se dez minutos. Ele suava. O primo, tranquilo, trocava informações sobre o melhor tipo de carro hidramático com um colega vestido de preto. Conversavam com a tranquilidade de alguém bebendo em um bar. Já ele, não. Sentia-se aterrorizado como um pecador da bíblia, já antevendo o chão tremer sob seus pés e ele ser sugado por um lençol de fogo, vindo das entranhas da terra. Então o rebe apareceu, lá de cima da escadaria. Desceu-a com seus passos tranquilos, seu olhar suave, seu rosto emanando uma bondade permanente, acrescida da sabedoria da velhice. Foi caminhando lentamente em direção a ele. Ele chegou a ver a feição compadecida do rebe no momento em que o senhor olhou fundo nos seus olhos assustados. E o religioso ia erguer o braço para proferir a benção quando....foi interrompido por um assessor. O assessor disse algo em seu ouvido, que o fez retroceder. E, com os mesmos passos lentos, ele retornava de onde viera, ou seja, para seus aposentos no andar de cima. Não é preciso dizer que ele quase desmaiou, após esta inusitada saída do rebe. E agora? Permaneceria ali, com a fé inabalável de que nada de mau lhe aconteceria? Ou sairia com a certeza de que não recebera e benção e que, por isso, estaria com as horas contadas? Passou em sua cabeça um filme sobre sua vida. Que pecado teria cometido para tamanho dilema? Lembrou-se de quando era menino e jogara uma pedra no colega. Ou de quando roubou, na adolescência, a namorada de seu melhor amigo. Culpou-se, por, já adulto, não contar para o garçom que este esquecera de cobrar uma taça de vinho na conta do jantar. Percebeu que, todo dia, havia cometido um pecadilho. Mas lamentou a possibilidade de não estar mais vivo em breve, para corrigir estes erros e recuperar o tempo perdido, vivendo com mais alegria e menos preocupações banais. E até cometer novos pecadilhos nesta vida em que o aprendizado depois do erro a torna ainda mais bela. Deixaria de se formar na faculdade que sempre sonhou. Não seria mais médico, as vidas que ele salvaria também poderiam estar se esvaindo naquele momento. Nem teria mais filhos, possibilidade que acalentava com amor, a cada namoro que começava, enquanto beijava cada uma de suas novas amadas. Quem revelaria seu doce mistério de amor? Em cada esquina, via-se de mãos dadas com a criança, ensinando-a, orientando-a, evoluindo com sua vivacidade infantil. Chegou a chorar diante desta realidade, que estava se delineando à sua frente. Nem respondeu à pergunta, desta vez preocupada, do primo, que logo correu em sua direção. "O que houve, por que ele voltou? Meu Deus..." lamentava, só faltando completar com "você está f...." Mas resolveu não arredar pé dali. Iria até o fim, até que apagassem as luzes do salão e junto com elas a sua esperança. Não dizem que a esperança é a última que morre? Pois bem, iria morrer junto com ele. Passaram-se mais dez minutos. Com ar sério, como se fosse acompanhar um enterro, seu primo se aproximou: "Vamos?" Então ele viu lá em cima, por entre os arabescos da balaustrada, a portinha se abrindo. Alguns religiosos desviaram a atenção do Sidur para olhar para o alto, no corredor que ficava no andar superior, entre os pilares da sinagoga. O rebe caminhou com os mesmos passos vagarosos. Desceu a escada segurando o corrimão com todo cuidado. Seu andar sereno demonstrava seu apreço por cada gesto, por cada movimento, um cuidado extremo, como se temesse se desviar de um caminho de sabedoria e paciência. Até o primo ficou pálido no momento em que o velho judeu se aproximou do rapaz, ainda mais impaciente para que a benção se realizasse finalmente. E então um inesperado diálogo teve início. O rebe, que nunca conversava durante estas situações, se dirigiu ao rapaz e perguntou. "Por que você quer tanto receber minha benção?" Atônito, o moço disse por impulso. "Porque o senhor representa a divindade, o que diz é como um decreto". "Desculpe, mas se você pensa desta maneira, não será benéfica a minha benção. Não sou Deus, apenas o reverencio e tento dar o exemplo para que outras pessoas alcancem a profundidade espiritual que guardam dentro delas." Ele ficou sem palavras diante do que ouviu. Não queria um debate filosófico, apenas estava seguindo o roteiro de todos, meio sem saber por quê. O importante, até então, era receber a benção, sentir-se protegido e ter o orgulho de contar para todos esta sua façanha. "A benção entre os homens é tão importante quanto a minha. Apenas corroboro aquele que acredita em si e acolho quem perdeu a fé. Deus fica até mais contente quando vê duas pessoas se abençoando mutuamente, demonstrando amor e sentindo-se a serviço de algo maior nesta vida além do próprio ego." "Mas e se o senhor não me abençoar?" Antes das histórias que os outros contam, acredite na verdade que existe em você. Se eu não te abençoar e você não se envergonhar de si, buscar a força dentro de você, nada de ruim lhe acontecerá." O rapaz já não conseguia conter as lágrimas. Sentia protagonizar uma conversa sublime, semelhante à dos grandes herois bíbilicos que escreveram a história do judaísmo. Justamente ele, que sempre se perguntava por que somente nos escritos antigos a mensagem de Deus se apresentava, percebia agora que no mundo moderno também podemos experimentar estes momentos sagrados, apesar de toda tecnologia e balbúrdia mecanizada que se instalaram ao nosso redor. Sim, ele não conversava diretamente com Deus, mas era como se estivesse fazendo. Sabia que Deus aprovava a fala do rebe e sentia-se um tanto constrangido por seus pecadilhos e seus interesses mundanos. "Fique tranquilo, rapaz, nenhum assessor vai mais me interromper, como fez há pouco, a meu pedido", disse o rebe. "Tome minha benção. Que Deus te proteja e lhe dê vida longa. Mas pense também na importância de você se abençoar diariamente, quando acorda, quando for dormir, para exercer não a divindade que todos atribuem a mim, mas a divindade que existe dentro de você." Virou-se de volta e subiu novamente a escada, quebrando com seus passos lentos o silêncio que reinava no recinto. O restante desta história não teve tantas novidades. Ele voltou para casa, após uma viagem sem percalços. Fez faculdade, formou-se em Medicina, conforme sonhava. Sentia sua vida fluir muito em função de uma luz que emanava de dentro dele.Casou-se, teve lindos filhos. Continuou a cometer alguns pecadilhos, mas certamente buscou a cada dia, graças ao diálogo marcante, exercer sua profissão com ética e educar suas crianças dentro dos conceitos de bondade e generosidade do judaísmo, muitas vezes esquecidos pelos próprios judeus. Já o rebe, segundo seu assessor, se disse satisfeito por ter cumprido sua missão. Desgastado fisicamente, já ansiava pelo repouso. Afirmou ao amigo que atingira o êxtase do amor pelo ser humano e via com clareza a divindade que reinava dentro de cada pessoa. O rapaz, com estas informações, percebeu que, após atingir o ápice da compreensão pelo outro, o rebe precisou de descanso. O sábio rabino sorria com ternura diante de desabafos superficiais e demonstrações vis de nossas fraquezas. Já não ligava para o egoísmo. Um dia, tudo iria se acertar, dizia para si. Por isso, na manhã seguinte àquela benção, o rebe morreu feliz. A alegria chassídica emanava em seu peito enquanto seus olhos se fechavam no leito. Estava contente por todas as bençãos que deu. Mas, acima de tudo, não carregava mágoas pelas bençãos que ele não recebeu. Logo depois do enterro, o primo lhe telefonou. "Eu fui ao sepultamento do rebe, e você?" "Não? Ihh...Soube de uma história sobre a morte do rebe anterior. Um rapaz do povoado preferiu ir a um compromisso em vez de comparecer ao velório. No dia seguinte..."

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